Você provavelmente conhece a música. Aquela melodia suave, hipnótica, com vozes que sobem e descem como se fossem parte de um transe tribal moderno. Ela aparece em trilhas, comerciais, desenhos animados. Está eternizada no imaginário popular com um refrão impossível de esquecer: “In the jungle, the mighty jungle, the lion sleeps tonight…”

Mas e se eu te dissesse que por trás desse hit global existe um apagamento histórico? Uma injustiça quase poética — e profundamente trágica?
É isso que revela o documentário “ReMastered: O Rei Leão e o Músico Esquecido”, da Netflix. Uma obra que não apenas reconstrói a origem de uma música mundialmente famosa, mas que confronta o colonialismo sonoro e os mecanismos sutis (ou nem tanto) de apagamento cultural.
Quem foi Solomon Linda?
Essa é a pergunta que abre as portas para a história. Solomon Linda foi um cantor zulu da África do Sul que, em 1939, gravou uma canção chamada Mbube. O nome significa “leão” em zulu — e essa música, gravada com seu grupo vocal The Evening Birds, capturava algo visceral. Um canto profundo, repetitivo, quase xamânico, que logo se espalhou por Joanesburgo.
Linda nunca imaginou que Mbube atravessaria oceanos, idiomas e séculos. Muito menos que, décadas depois, se tornaria The Lion Sleeps Tonight — um dos maiores hits da música pop do século 20.
Mas aí começa a tragédia.
A metamorfose do leão
A música foi exportada, remixada, regravada. Passou por artistas como Pete Seeger (que rebatizou a canção de Wimoweh), depois pelo grupo The Tokens, e mais tarde foi parar até na trilha sonora de O Rei Leão, da Disney.
Cada nova versão trazia elementos “ocidentais”, simplificações harmônicas, traduções melódicas. E, claro, muito dinheiro.
Mas o que Solomon Linda ganhou com isso? Quase nada.
Ele morreu pobre, em 1962, com apenas 53 anos, sem nunca ter recebido os direitos autorais que lhe eram devidos. Sua família viveu por décadas em condições precárias, enquanto sua criação gerava lucros milionários.
A jornada por justiça
O documentário é conduzido por Rian Malan, jornalista sul-africano branco, descendente de um dos arquitetos do apartheid. A ironia histórica é evidente. Mas Malan se torna um personagem-chave: ele investiga o caso, expõe contratos fraudulentos, pressiona editoras musicais e entrevista familiares de Linda.

É quase uma jornada de redenção. Não só por parte de Malan, mas também por parte da própria indústria fonográfica — que aos poucos, pressionada pela opinião pública, precisou reconhecer que havia algo de muito podre nessa cadeia de apropriação.
Em 2006, após anos de batalhas judiciais, a família Linda recebeu um acordo financeiro (cujo valor exato permanece em sigilo). Uma vitória tardia, mas simbólica.
O olhar do documentário
Dirigido por Sam Cullman, o documentário não é panfletário. Ele é sensível, elegante e profundamente cinematográfico. A fotografia, assinada por Dominic Black, mistura entrevistas contemplativas, imagens de arquivo com textura original, e planos fixos que deixam o tempo atuar.
A montagem é sutil, quase meditativa. Não há pressa. O ritmo é o da escuta, do resgate, da paciência necessária para contar o que foi silenciado.

A escolha estética valoriza o humano. Não vemos apenas rostos, mas espaços. Casas com objetos antigos, tapeçarias, fotos desbotadas. A ancestralidade está presente até no enquadramento.
O peso da memória
O mais impactante talvez não seja a denúncia em si — mas o silêncio ao redor dela. Por que essa história demorou tanto para vir à tona? Por que tantas vozes foram ignoradas?
O caso de Solomon Linda expõe uma estrutura muito maior: a forma como o Ocidente sempre tratou a cultura africana como matéria-prima a ser consumida, apropriada, e descartada. E isso vale pra música, pra moda, pra linguagem, pra espiritualidade.
O leão dormia — mas não por vontade própria.
Uma canção de reparação
“ReMastered: O Rei Leão e o Músico Esquecido” é, acima de tudo, um gesto de reparação. Não resolve tudo. Não paga todas as dívidas. Mas propõe um olhar novo sobre algo que estava naturalizado.
É um convite a ouvir com outros ouvidos. A perguntar quem está por trás daquilo que nos emociona. A dar crédito — literal e simbólico — a quem sempre foi marginalizado.
Talvez o maior mérito do documentário seja esse: ele transforma uma história invisível em memória coletiva. E isso, em tempos de sobrecarga informacional e narrativas fabricadas, é mais valioso do que nunca.
Você nunca mais vai ouvir essa música do mesmo jeito
Se você chegou até aqui, te convido a fazer um teste: procure The Lion Sleeps Tonight na sua plataforma de música preferida. Ouça com atenção. Depois, procure Mbube, na voz original de Solomon Linda.
Compare. Sinta. Reflita.
Porque às vezes, a verdadeira revolução começa no ouvido.